sábado, 23 de abril de 2011

O maravilhoso cotidiano

   O movimento surrealista surgiu na década de 1920, e introduziu o fantástico mundo onírico sobretudo na pintura. Os adeptos dessa vanguarda adoravam o "maravilhoso cotidiano", que era a revelação de elementos comuns do dia a dia em coisas belíssimas e irreais na Arte.
   Sei que minha Poesia está longe de ser surrealista, pois a loucura do onírico não está nela. Mas também amo a idéia do maravilhoso cotidiano em sentido amplo, ou seja, ver a Musa em cada coisa, em cada canto, naquilo que é mais simples e tem sua magia descoberta através da Arte.
   Muitos estão cegos para a beleza do cotidiano. Uma vez, um violinista talentoso estava em frente a um shopping, tocando, e poucos eram os que paravam, mesmo por alguns momentos, e escutavam. Não quero condenar aqui os que correm, apenas não acho que na correria se deva ficar sem sentidos para o que há de bonito em volta. 
    Mas eu vou lhes dar um exemplo melhor: a feirinha de antiguidades da Praça XV, que acontece todo sábado de manhã.
    O que um observador puramente técnico vê é um monte de coisas velhas, em bom estado ou não, necessárias ou superflúas, sendo comercializadas por muitas pessoas. O que eu vi quando fui há algumas semanas lá foi a Poesia presente na História, em fotos antigas, missais e pratarias, entre outros, de gente que viveu numa realidade anterior e da onde saiu a nossa. Câmeras, algumas do tipo lambe-lambe, estavam lá também e fico imaginando o que fotografaram... Que versos e linhas em prosa aquelas antigas canetas escreveram? Que notícias, concretas ou abstratas, levaram? E como levaram _ com ou sem subjetividade? E aqueles livros de capa desbotada, redigidos em português arcaico, que mundos carregam em suas páginas? Nunca saberemos ao certo, e desse mistério, surgem sonhos extraordinários...
     Meus amigos, nessa feirinha, o maravilhoso cotidiano existe não só em sentido amplo, como em estrito. Afinal, todo esse universo esquecido volta à tona; é um sonho que retorna, enriquecido pela imaginação atual de muitos, à consciência. O surrealismo está lá...
     E por que há ainda aqueles que não percebem a beleza disso? Estão claramente enredados demais nos mecanismos de sua subsistência _ em trabalhar sem prazer, em comer, dormir, administrar seus bens, manter uma boa reputação _ para perceber qualquer aparição da Musa. Esses não vivem; sobrevivem. Esquecem-se dessa diferença, a mais básica e importante de todas, ao acordar (se é que em algum momento tiveram conhecimento dela) e se a lembram, o fazem apenas na hora de dormir, quando o dia já se foi com sua beleza... E fazem isso dia após dia, desperdiçando o maravilhoso cotidiano _ em outras palavras, a própria vida.
     Deixo aqui alguns versos meus, que retornaram ao meu espírito como todo aquele cosmo evocado pela feirinha voltou à minha memória, ainda que nunca o tenha vivido.


Sombra libertina


Ao longe, na rua deserta
uma sombra no chão se firma
o Sol, o Céu e a Terra
sorriem para a tal libertina
que dança no asfalto, sem preocupação
os movimentos são poesia
a mais pura do coração
e seu dono, que viu que o Sol
para sua sombra sorria
pôs em movimento novamente
a querida sombra libertina
e a Manhã suspirava, e consigo dizia:
A libertinagem é o raiar
de um novo dia.
Deus abençoe essa sombra libertina!


Mas os homens que eram conservadores
e não viam a beleza da vida
(pois em suas vidas não havia amores)
censuravam a dançarina.
Achavam que a sombra
só por ter alegria
afrontava o universo róseo
que alguém um dia construíra
E o Sol, o Céu e a Terra com a Manhã
concordavam, que dizia:
Deus abençoe essa sombra libertina!


E a sombra e o seu dono
não pararam de dançar
nos asfaltos das ruas, às doces melodias.
E as Árvores, os Campos, o Verde
concordavam com a Manhã, que dizia:
A sociedade precisa
de mais sombras libertinas!

sexta-feira, 22 de abril de 2011

Sexta-feira de paixão

 Ontem, em um clarão, me lembrei de um lindo poema de Florbela Espanca, uma das mais encantadoras poetas que conheço. Não coloco aqui nenhuma introdução maior a estes versos... Digo apenas que são perfeitos, sem risco de hipérbole.

 
Impossível


Disseram-me hoje, assim, ao ver-me triste:
“Parece Sexta-Feira de Paixão.
Sempre a cismar, cismar de olhos no chão,
Sempre a pensar na dor que não existe.


O que é que tem? Tão nova e sempre triste!
Faça por estar contente! Pois então?”
Quando se sofre, o que se diz é vão.
Meu coração, tudo, calado, ouviste.


Os meus males ninguém mos adivinha,
A minha Dor não fala, anda sozinha,
Dissesse ela o que sente! Ai quem me dera!


Os males de Anto toda a gente os sabe!
Os meus ... ninguém ... A minha Dor não cabe
Nos cem milhões de versos que eu fizera!