segunda-feira, 20 de agosto de 2012

Corações sujos

  Retorno depois de mais uma longa ausência. Porém, dessa vez, devo dizer que não foram apenas os estudos que me mantiveram longe desse espaço durante esses meses. Eu estou no final da tarefa de registrar um grande compilado de textos meus na Biblioteca Nacional. Os autores sabem que isso é delicado; o processo de escolha, digitalização e revisão de escritos pode demorar bastante, aumentado inclusive pelas outras atividades que nos consomem tempo.
  Enquanto termino esse trabalho, deixo aqui uma resenha sobre o filme "Corações sujos", de Vicente Amorim, baseado na obra de Fernando Morais e inspirado em fatos históricos. Original e genuíno, ele conta uma história que aconteceu logo depois da Segunda Guerra Mundial em uma colônia de japoneses no Brasil. O Japão perdeu o conflito, mas muitos nipônicos que estavam aqui não acreditaram. Pensavam que se tratava de mais uma hostilidade do governo que os proibia de ter suas próprias escolas, jornais ou de fazer qualquer reunião.
   A repressão a esse povo não incluía apenas isso. A origem do antiniponismo aqui se encontrava no medo do imperialismo japonês e no nacionalismo exacerbado brasileiro dos anos 30 (Era Vargas), e foi o Jornal do Commercio o primeiro a fazer ataques aos imigrantes japoneses. Nesse triste empreendimento, a figura do médico Miguel Couto teve destaque; em suas obras, denunciavam-se os nipônicos como instrumentos e espiões do governo de sua terra natal, os quais estavam a serviço da destruição do Brasil. Além disso, eram retratados como seres inferiores; não eram brancos, e assim a miscigenação apenas contaminaria a sociedade. Xavier de Oliveira, psiquiatra, que, como Couto, era deputado e participou da Assembléia Nacional Constituinte de 1933, afirmava também que esse povo asiático tinha tendência a desenvolver doenças mentais incuráveis.
  As primeiras emendas que o grupo de deputados antinipônicos apresentou ao texto constitucional em andamento foram rejeitadas, pois provocaram a reação do governo japonês conjugado com o Itamaraty. Este não desejava indispor o país a uma potência militar em ascensão. No entanto, foi aprovada a Emenda Miguel Couto (artigo 121 da Constituição de 1934), a qual estabelecia reduzidas cotas de imigração para muitos povos, exceto o português, e que afetou de modo indireto severamente a chegada de japoneses aqui.
  O fechamento de jornais, escolas e associações japoneses no Brasil ocorreu logo depois do golpe que instituiu a ditadura varguista denominada Estado Novo. A partir desse momento, as colônias estrangeiras no Brasil foram alvos da política de "nacionalização", que se manifestavam por meio de decreto-leis. Os nipônicos, de cultura muito distinta da brasileira, e que viviam em comunidades fechadas, eram vistos com particular receio, e sofreram de modo intenso especialmente depois do ataque de 1941 à Pearl Harbor. Em "Corações Sujos", cuja história se passa no interior de São Paulo em 1946, várias cenas revelam a repressão policial. Uma das primeiras do filme mostra uma solenidade militar, em que um coronel da reserva do exército japonês proclama que seu Estado não perdeu a Segunda Guerra. A polícia invade a reunião com violência. Quando a bandeira do Japão é atirada ao chão, um idoso tenta resgatá-la, e um dos policiais pisa em seus dedos. A seguir, esse mesmo homem a usa para limpar as próprias botas.
  Os japoneses, então, exigem a morte daquele que os desonrou. Isso nos induz a pensar em um conflito armado entre os nipônicos e as autoridades brasileiras naquela colônia. Porém, não se trata disso. Alguns nipônicos acreditam na derrota japonesa, o que é inadmissível para os demais. Acreditar em tal coisa é ter o coração sujo, é deixar de ser japonês e passar a ser um animal. Como dizer que o Japão, cujo imperador é tido como um deus, e que ganhou inúmeras guerras anteriormente, perdeu o confronto?
  Essa crença na grandeza japonesa resulta em várias mortes dos supostos traidores. Ao final do filme, se revela que os homicídios e perseguições que aconteceram aos donos dos "corações sujos" em todo o território nacional foram muito mais numerosos.
  As atuações do filme revelam uma linda obra artística. Os atores transmitem, de um modo visceral, toda uma atmosfera de nacionalismo, ódio, medo, luto e incerteza. Eles nos conduzem a uma história viva, que se encontra fria e distante nos livros dos historiadores. 
  Somando isso à trilha sonora, é impossível não se entregar a "Corações Sujos". Em certas cenas, há música clássica ocidental; em outras, instrumentos de corda dissonantes. E há aquelas, as mais belas e marcantes, em que aparacem melodias japonesas tradicionais, e que nos transportam ao particular sentimento de honra e dever que acompanha tantos personagens. E ao mesmo tempo em que é atribuído um tom clássico a essas cenas, pois remetem ao Japão Medieval, elas são dolorosamente reais.
   Deixo aqui o trailer do filme e a minha recomendação.