quarta-feira, 30 de junho de 2010

Tributo a Saramago

    Ariano Suassuna disse em uma entrevista ao Globo há alguns anos que fazer Arte tem como propósito, em última análise, vencer a morte. Assim, Saramago, como Machado de Assis, Florbela Espanca, o próprio Suassuna, Gabriel García Márquez e tantos outros bons escritores, é imortal nas páginas de suas obras. Entretanto, José morreu na carne, que é o fim que nos espera democraticamente a todos.
  Saramago morreu na carne recentemente, e também recentemente (para ser mais precisa, domingo, no mesmo dia em que publiquei uma postagem sobre a morte do excelente escritor português) tive de levar meu irmão à missa. Essa tarefa, que pode ser considerada banal, me inspirou uma reflexão que coloco aqui, e que ofereço como tributo a José.
   Meu irmão está fazendo catequese católica, e tem que bater ponto na missa todo domingo. Ele é obrigado a ir aos cultos dominicais, e para fiscalizar o cumprimento dessa imposição, o menino tem uma carteira que precisa ser carimbada ao final de cada missa. É realmente encantadora a forma como seduzem as crianças a gostar da Igreja, e não a vê-la como uma fastidiosa obrigação, praticamente um trabalho chato. Afinal, religião é apenas labor, no sentido original da palavra, que veio do latim e significa "tortura".
   Mas a história ainda fica melhor. Durante a celebração do culto, a famosa cesta de doações passou, e na saída da missa, uma espécie de rede de pano colocada no final de um cabo de vassoura foi levada em direção à multidão que saía da missa para recolher mais dinheiro. Além disso, não posso me esquecer de mencionar a simpática bancada do dízimo, montada logo à entrada da igreja, na qual vi pessoas depositando dinheiro e registrando seus nomes.
   Entretanto, isso não é tudo. Não posso me esquecer de falar aqui dos lindíssimos cânticos compostos especialmente para "a missa com crianças". Todos eram uma obra-prima poética e filosófica. Gostei particularmente de dois cantos, o "Canto da Reconciliação", e "Vamos, irmão".
    O primeiro, assim como o segundo, é digno de ser entoado em um templo da Igreja Universal do Reino de Deus. Diz-se na primeira estrofe: "Se estás para trazer/a oferta até o altar/e ali te recordares: "Feri o meu irmão",/ deixando o donativo,/a paz vai reatar;/ depois tu voltarás,/farás tua oblação." É bom saber que doar dinheiro à Igreja é uma forma de obter o perdão divino pelo pecado, que prejudicou um irmão. Além disso, atentem para o fato de que, nos dois últimos versos, pede-se que o fiel volte posteriormente para dar mais dinheiro à Igreja, digo, a Deus. Esse octeto já seria suficiente para arruinar a música inteira, mas os compositores acharam melhor se certificarem disso na segunda estrofe, onde se fala: "Aquele que é injusto/e odeia é homicida,/porém se amar o irmão,/passou da morte à vida (2x)." Como alguém injusto, assassino e que tem ódio pode amar o próximo?
   O segundo canto, "Vamos, irmão", prega: "Se você tem fé fique de pé/Se você é irmão entre nesta procissão (2x)" Isso parece um axé, com as palavras sendo selecionadas de forma a obter rimas por alguém que não tem a menor criatividade nem o mínimo conhecimento de Português. Mas não podemos esquecer de exaltar a segunda estrofe desse lindíssimo canto, que nos fala: "Vamos, irmão, levante caminhe/com disposição, trazendo a sua oferta/de acordo com o seu coração." Depois desse belo terceto, há mais dois, que continuam pedindo doações. Inclusive, a quarta estrofe de "Vamos, irmão" diz ao final que se o fiel não tiver nada, deve oferecer o seu coração _ certamente um prêmio de consolação para a igreja; quem se importa com o coração dos fiéis? A chave de ouro vem nos últimos versos do canto, onde se diz que Deus não faz distinção, somos todos iguais e irmãos. Conclusão: se todos somos iguais e irmãos, todos devemos atender sempre ao chamado da igreja por mais riqueza material.
   Por que eu tenho a leve impressão de que já pediram muito dinheiro dos fiéis durante a missa, e que estão tratando isso como um assunto importantíssimo? Ah, esqueçam, esse pensamento deve ter sido inspirado por Lúcifer...
   Além disso, percebam: nunca dizem aos fiéis de forma clara para quê são usadas essas doações. E isso não é exclusividade apenas da igreja a que fui, mas vale para todos os templos católicos.
   E se por acaso uma igreja comete o pecado de não pedir excessivamente dinheiro dos ouvintes das missas, o padre dessa paróquia é castigado pela justa Santa Sé, sendo transferido para igrejas menores e menores... Isso aconteceu com um padre conhecido há várias décadas pela minha família, que se recusava a abusar monetariamente dos fiéis e que dava grande apoio espiritual aos paroquianos. Tive a sorte de ser batizada por ele, e fazer a minha primeira comunhão onde ele pregava.
    Por tudo isso, trabalhar na Igreja Católica está se tornando uma alternativa atraente para o pessoal que se desilude com a Universal. Afinal, às vezes é lucrativo fazer o caminho inverso, não?
    Deixo aqui um poema meu, "Mentiras", caso me acusem de estar mentindo, mesmo contrariando toda a luz da razão.

Mentiras

Mentiras são verdades renegadas;
mentiras são rompantes de lágrimas;
mentiras são frágeis rosas, falsas estrelas,
pedras mais brilhantes que o Sol.
Mentiras nos desfalecem nos dedos
e em luz se transformam.
Há mentiras, porém, enraizadas,
emaranhadas sob solo pedregoso
no misterioso vácuo de nossas mentes
e que consideramos a Real Felicidade.
E as minhas mentiras, o que são?
Uma vez meu pai me disse:
“Qual mentira tu contaste a tua mãe?”
“Contei várias _ respondi, orgulhosa._
Pois minhas mentiras são
Verdades Desafiadoras.”

2 comentários:

  1. Querida Isabela, lamentável o que fazem nas igrejas... Adorei "contei várias - respondi, orgulhosa". Beijo grande, continue desafiando, acho que é o verdadeiro caminho... Tati

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  2. Oi, Tati,
    realmente isso é lamentável, mas é importante ressaltar que nem todas as igrejas são assim, graças a Deus.
    E que bom que você gostou desse verso.
    Obrigada pelo apoio =)

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