domingo, 2 de outubro de 2011

Adeus

 A vida é uma história fascinante, mesmo quando curta. Não pode haver romance mais cheio de quebras de momentos de estabilidade. Sempre algo rompe o nosso precário equilíbrio.
  Frequentemente, temos surpresas até quando esperamos que algo aconteça, pois nunca se sabe o instante exato em que virá o que se aguarda. Escrevo nisso pensando na morte de minha avó. 
  Sim, todos morrem. E quem não espera que os muito mais velhos vão embora antes? É a ordem natural. Mas sempre ficamos espantados, em choque, porque sempre achamos que demoraria mais, nem que fosse apenas mais alguns dias...
  Minha avó faleceu, e uso essa palavra não por querer ser eufemista, coisa que detesto, mas porque ela estava tão frágil que foi como se a morte tivesse sido um sopro, suave, para ela. Ela tinha estado muito doente, e ia definhando em seus últimos anos, física e mentalmente. Os que acompanham processos assim conhecem muito bem a tristeza e o horror do que descrevo.
    A expectativa é de que ela falecesse, e digo, ignorando todos os idiotas que certamente interpretarão mal, por ingenuidade ou secreta maldade, o que escrevo, que havia, no fundo, o desejo de que ela morresse. Será que é bom viver com constante dor física, tantas limitações de corpo, e, sobretudo, sem a maior parte da memória e da lucidez? A morte a levou, e foi melhor assim.
     Mas não se pode evitar a dor da perda, que aqueles que ficam, sentem. Eu a amava, apesar de ser bem realista quanto a seus defeitos, e de toda a guerra familiar que me levou a me afastar bastante dela nos últimos anos, e que agrava mais ainda essa despedida. Nunca a tratei mal, e não há necessidade de contar aqui o que provavelmente só contarei detalhadamente, talvez, na minha autobiografia.
      Talvez sejam todas as lembranças boas que tenho dela o que faça ser tão difícil esse meu luto tão heteredoxo, feito de palavras, linhas e versos, dor de cabeça e poucas lágrimas. A pessoa que estava comigo naqueles momentos de alegria se foi. Sei que todos os momentos, assim que consumados, pertencem ao passado; mas é como se eles se perdessem mais definitivamente quando um de seus protagonistas vai embora.
       Compus (e, quem sabe, ainda esteja compondo) um poema para minha avó.


Rosa de pedra

Nesse estranho jardim cinza,
de pedras, anjos e santos,
entramos.
Tu dormias, imperturbável.
Como a uma criança, te levávamos
para a cama, tão lentamente,
como se temêssemos despertá-la.
Cada detalhe está esculpido em minha memória,
assim como aqueles inúmeros nomes,
e as incontáveis saudades,
genuínas ou falsas,
gravadas nas rochas polidas,
que pareciam aflorar daquele solo. 
Mas o que senti naqueles instantes
já se vai escoando entre os meus dedos 
lentamente...


Um véu bordado te cobre,
e tu te perdes entre tantas flores!
E, toda noite, antes de me perder no sono e no sonho,
lembro que descansas, serenamente,
liberta de toda dor que já sentiste.
Não sei se és capaz de escutar esta canção,
ou de ouvir a pena compondo as palavras,
como notas que sussurram e riscam o ar.
Mas canto para mim e para os que ficam,
porque são nossos todo o temor,
o sofrimento,
o caos.
Tu és embalada no grave silêncio,
ácido para nós, e leve para ti,
das coisas ditas e não ditas.
E apenas um número _ um palíndromo _
marca o teu leito de concreto.

quinta-feira, 14 de julho de 2011

A política da ignorância

           Depois de três longos meses, voltei. Desculpem a demora; culpa da UERJ obviamente. Mas prometo compensar a minha ausência com vários textos ao longo destes trinta dias sabáticos.
         Com tantos assuntos colhidos nos noticiários durante esse meu recesso forçado, é difícil escolher aquele que abordarei primeiro. Entretanto, como gosto de estabelecer relações entre as notícias, começarei pelo tema da educação.
        Parece contraditório que alguém que entra de férias queira se estressar. Vocês devem estar pensando que eu deveria ter começado a falar de amor, ou continuar a tendência do post anterior e fazer um texto inspirado por um ponto do roteiro cultural do Rio. Mas quem entrou de férias foi a estudante de Direito. A escritora agora pega novamente a pena e o teclado para recomeçar a sua obra.
        Nunca investiram da forma adequada na educação pública. A novidade é, entretanto, que agora nossos políticos estão investindo para torná-la pior. O ENEM é o grande exemplo disso. Em 2009, se tornou uma grande prova de resistência (com 180 questões e uma redação para serem feitas em apenas duas etapas, em dois dias seguidos), e o governo se mostrou incapaz até mesmo para providenciar a segurança de uma gráfica, o que resultou no adiamento da prova devido a vazamento de questões. Em 2010, houve problemas no gabarito e mais modificações no já confuso formato. E em 2011, a UFRJ o adotou integralmente como vestibular (o que por si só, é um absurdo devido à essência e ao histórico do ENEM) e avisou isso com a larga antecedência de quatro meses...
      Além disso, os professores da rede pública, que ganham um salário risivelmente incompatível com o esforço de ensinar, estão sendo continuamente ignorados em suas reivindicações por aumento salarial. As negociações ainda estão em curso, mas devido ao entusiasmo das autoridades em relação a esse setor, todos já sabem qual será o resultado...
        Não é sequer dada a oportunidade de o cidadão ajudar voluntariamente os alunos de escola pública. Cito aqui o meu exemplo. Nesse ano, separei alguns bons livros didáticos para doar. Creio que totalizaram vinte exemplares. Procurei na Internet os telefones do setor da Secretaria Municipal de Educação que cuidava de doação de livros. Recebi um tratamento digno de central de telemarketing, sendo transferida de uma divisão para outra, para no final ouvir uma excelente piada. Disseram-me que o governo federal já providenciava todos os livros didáticos necessários para os alunos da rede pública. Fui professora particular de um aluno desses durante alguns meses em 2010; ele apenas tinha um livro didático (de História), e todo o resto do material eram folhas elaboradas pela prefeitura. Devo concluir que os livros das várias outras disciplinas eram desnecessários? 
           Nas escolas públicas, o que menos se faz é ensinar. Recentemente, em menos de um mês, houve três festas de confraternização em uma escola pública perto da minha casa. Além disso, há excesso de comprometimento com exposições (na época da Copa do Mundo, as aulas foram praticamente suspensas na escola de meu ex-aluno para que os estudantes tivessem tempo de fazer trabalhos sobre futebol. Nada contra o esporte anglo-saxão, mas parar de seguir normalmente o currículo é um pouco demais, não?). Mais um exemplo da falta de compromisso com as aulas é o excesso de atividades extras como terapia e educação sexual. Tudo isso é necessário, entretanto, o ensino é posto em segundo plano para que se privilegiem esses diversos pontos.
            O governo deveria ser processado por propaganda enganosa quando resolve alardear suas "conquistas" na educação. A "última" foi quando resolveu orgulhosamente anunciar que a média dos estudantes de rede pública em um exame para avaliar o nível das escolas estatais havia aumentado alguns décimos. Isso foi dito como se fosse realmente um grande feito de nossos excelentes governantes.
            Esse seria o penúltimo parágrafo do meu texto, mas me deparei agora há pouco com a notícia de que o índice de repetência no ensino fundamental é de cerca de vinte porcento e, no ensino médio, é de aproximadamente trinta. Como se não fosse o suficiente, o nosso muito amado MEC declara que, para corrigir essa distorção, as escolas devem simplesmente reprovar menos e usar outras ferramentas para melhorar o aprendizado.  Ninguém nega a importância do reforço escolar; se feito adequadamente, as taxas de repetência cairão vertiginosamente. Entretanto, reprovar aqueles que merecem ser reprovados é uma obrigação e uma necessidade. Passar de ano aqueles que não estão em condição de avançar de série é uma mera maquiagem. Afinal, esses estudantes não têm o conhecimento necessário para passar de ano, e não compreenderão a matéria ensinada na série mais avançada. Além disso, estamos em uma meritocracia (o que aparece na nossa Constituição); as conquistas devem ser alcançadas por merecimento. Se um estudante não conseguiu passar de ano, se ele não o mereceu, não deve ser aprovado. E é claro que há a questão óbvia de que a escola se propõe a dar o conhecimento apropriado a cada ano para os estudantes daquela série. Se o aluno não consegue assimilar esse conhecimento na primeira vez em que cursa um ano, deve cursá-lo de novo. Segue o link da notícia: http://oglobo.globo.com/educacao/mat/2011/07/13/um-em-cada-cinco-estudantes-do-ensino-fundamental-esta-atrasado-na-escola-924889704.asp
            A mentalidade atual é a de desvalorização do estudo. Para que fazer dever de casa? E para que colocar o filho em uma escola melhor, se todo colégio é igual, e o verdadeiro símbolo do sucesso é o carro do ano? E caso haja alguma festa ou viagem para ir, por que não faltar à escola? Se o dinheiro escassear em razão das dívidas contraídas no cartão de crédito para pagar smartphones e roupas de grife, o que impede você de colocar sua criança em um colégio muito mais barato (talvez até um público) e tirá-lo do professor particular? Esse modo de pensar precede a destruição progressiva da educação, e é terrivelmente alimentado por ela.
            Nossos governantes querem nos manter na ignorância. De que modo iríamos continuar elegendo a eles e seus aliados?

sábado, 23 de abril de 2011

O maravilhoso cotidiano

   O movimento surrealista surgiu na década de 1920, e introduziu o fantástico mundo onírico sobretudo na pintura. Os adeptos dessa vanguarda adoravam o "maravilhoso cotidiano", que era a revelação de elementos comuns do dia a dia em coisas belíssimas e irreais na Arte.
   Sei que minha Poesia está longe de ser surrealista, pois a loucura do onírico não está nela. Mas também amo a idéia do maravilhoso cotidiano em sentido amplo, ou seja, ver a Musa em cada coisa, em cada canto, naquilo que é mais simples e tem sua magia descoberta através da Arte.
   Muitos estão cegos para a beleza do cotidiano. Uma vez, um violinista talentoso estava em frente a um shopping, tocando, e poucos eram os que paravam, mesmo por alguns momentos, e escutavam. Não quero condenar aqui os que correm, apenas não acho que na correria se deva ficar sem sentidos para o que há de bonito em volta. 
    Mas eu vou lhes dar um exemplo melhor: a feirinha de antiguidades da Praça XV, que acontece todo sábado de manhã.
    O que um observador puramente técnico vê é um monte de coisas velhas, em bom estado ou não, necessárias ou superflúas, sendo comercializadas por muitas pessoas. O que eu vi quando fui há algumas semanas lá foi a Poesia presente na História, em fotos antigas, missais e pratarias, entre outros, de gente que viveu numa realidade anterior e da onde saiu a nossa. Câmeras, algumas do tipo lambe-lambe, estavam lá também e fico imaginando o que fotografaram... Que versos e linhas em prosa aquelas antigas canetas escreveram? Que notícias, concretas ou abstratas, levaram? E como levaram _ com ou sem subjetividade? E aqueles livros de capa desbotada, redigidos em português arcaico, que mundos carregam em suas páginas? Nunca saberemos ao certo, e desse mistério, surgem sonhos extraordinários...
     Meus amigos, nessa feirinha, o maravilhoso cotidiano existe não só em sentido amplo, como em estrito. Afinal, todo esse universo esquecido volta à tona; é um sonho que retorna, enriquecido pela imaginação atual de muitos, à consciência. O surrealismo está lá...
     E por que há ainda aqueles que não percebem a beleza disso? Estão claramente enredados demais nos mecanismos de sua subsistência _ em trabalhar sem prazer, em comer, dormir, administrar seus bens, manter uma boa reputação _ para perceber qualquer aparição da Musa. Esses não vivem; sobrevivem. Esquecem-se dessa diferença, a mais básica e importante de todas, ao acordar (se é que em algum momento tiveram conhecimento dela) e se a lembram, o fazem apenas na hora de dormir, quando o dia já se foi com sua beleza... E fazem isso dia após dia, desperdiçando o maravilhoso cotidiano _ em outras palavras, a própria vida.
     Deixo aqui alguns versos meus, que retornaram ao meu espírito como todo aquele cosmo evocado pela feirinha voltou à minha memória, ainda que nunca o tenha vivido.


Sombra libertina


Ao longe, na rua deserta
uma sombra no chão se firma
o Sol, o Céu e a Terra
sorriem para a tal libertina
que dança no asfalto, sem preocupação
os movimentos são poesia
a mais pura do coração
e seu dono, que viu que o Sol
para sua sombra sorria
pôs em movimento novamente
a querida sombra libertina
e a Manhã suspirava, e consigo dizia:
A libertinagem é o raiar
de um novo dia.
Deus abençoe essa sombra libertina!


Mas os homens que eram conservadores
e não viam a beleza da vida
(pois em suas vidas não havia amores)
censuravam a dançarina.
Achavam que a sombra
só por ter alegria
afrontava o universo róseo
que alguém um dia construíra
E o Sol, o Céu e a Terra com a Manhã
concordavam, que dizia:
Deus abençoe essa sombra libertina!


E a sombra e o seu dono
não pararam de dançar
nos asfaltos das ruas, às doces melodias.
E as Árvores, os Campos, o Verde
concordavam com a Manhã, que dizia:
A sociedade precisa
de mais sombras libertinas!

sexta-feira, 22 de abril de 2011

Sexta-feira de paixão

 Ontem, em um clarão, me lembrei de um lindo poema de Florbela Espanca, uma das mais encantadoras poetas que conheço. Não coloco aqui nenhuma introdução maior a estes versos... Digo apenas que são perfeitos, sem risco de hipérbole.

 
Impossível


Disseram-me hoje, assim, ao ver-me triste:
“Parece Sexta-Feira de Paixão.
Sempre a cismar, cismar de olhos no chão,
Sempre a pensar na dor que não existe.


O que é que tem? Tão nova e sempre triste!
Faça por estar contente! Pois então?”
Quando se sofre, o que se diz é vão.
Meu coração, tudo, calado, ouviste.


Os meus males ninguém mos adivinha,
A minha Dor não fala, anda sozinha,
Dissesse ela o que sente! Ai quem me dera!


Os males de Anto toda a gente os sabe!
Os meus ... ninguém ... A minha Dor não cabe
Nos cem milhões de versos que eu fizera!

quarta-feira, 16 de março de 2011

Excalibur

  A poeta está muito alegre. O motivo é a atenção recebida pela sua postagem anterior. Vários elogios foram feitos. Alguns aparecem no blog e no Facebook, e conto ainda com aqueles recebidos por MSN, os quais guardo no meu acervo particular, minha memória.
  Os escritores sabem o quanto é difícil divulgar seu trabalho quando estão no começo de sua trajetória. Boa literatura vende pouco no Brasil. E minha situação é especialmente complicada, pois faço versos. É frustrante saber que sites com conteúdo superficiais e emburrecedores têm mais seguidores e comentários que espaços culturais de qualidade, como o meu blog.
  Entretanto, agora a situação começa a mudar. Ainda sou bem desconhecida, eu sei, mas a repercussão de meus textos está crescendo. Isso me incentiva a continuar a usar minha Excalibur.
   Não me refiro aqui à legendária espada do Rei Arthur, mas a uma linda caneta que ganhei de Natal. Embora não tenha ainda gastado nem uma gota de sua tinta, posso dizer que utilizo sim esse precioso instrumento, pois ela é um símbolo do meu trabalho de escritora.
   Espero dar autógrafos e escrever lindas dedicatórias com ela no futuro, nas noites de celebração das minhas batalhas vencidas com essa imponente espada, que me ajudará a mostrar ao mundo o encantamento das minhas palavras.
   Dedico os versos seguintes, que merecem ser lidos muitas vezes, ao cavalheiro que me presenteou a Excalibur.

      
Sopro de água


Minha pena dança sobre o alvor do papel
e nas palavras encontro o meu refúgio;
tirando dos meus olhos todo o pranto,
afogo-me de novo em um mar turvo.


Oh, pobre sofrimento inconstante,
que me mata e me deleita como a uma rainha,
pois, se da dor tiro eu esperanças,
de teu ventre geras alegria!


E somente quem se empenha, de todo,
na graciosa arte de escrever
sabe que o lodo pode ser perfume
ao mesmo tempo, mas a diferente ver.


E esta abundância que explode em minh’alma,
de belas rosas de emoções distintas,
dá-me sempre uma fugaz certeza:
hei de ser eternamente serva e rainha.

terça-feira, 8 de março de 2011

Feliz aniversário atrasado!

 Meus leitores, mais uma vez desapareci e reapareci por aqui. Deixei-os com o encantador mundo nosso de cada dia, e me entreguei a lapidar versos e pensamentos, viajar para uma terna cidade mineira, sair com os amigos e adoecer. Nada disso é, entretanto, pretexto para não ter ressurgido aqui antes, por ocasião do aniversário deste blog. "O livro está na mesa" completou um ano em 12 de fevereiro, e agradeço a seus poucos e bons leitores, tanto aos antigos quanto aos recentes.
  Esta mesa literária é ainda pequena, mas já cresceu e estou feliz com as críticas que tenho recebido de meu público, não só dos seguidores como dos outros visitantes. Até aqueles que se mantêm em silêncio são importantes, pois estão presentes com o seu apoio, mesmo que já tenham discordado de mim. De alguma forma, todos os meus leitores encontraram um bom recanto artístico aqui, ainda que imperfeito.
   Continuarei a divulgar este blog, e reitero as promessas que fiz: novos poemas meus e prosas minhas para este espaço querido. Deixo de presente, para relembrar, "Bela Balada", que muitos de vocês ainda não tiveram a chance de ler, e que foi um dos primeiros com que inaugurei as páginas desse livro virtual (mas, nem por isso, menos real).


Bela Balada

 

Fazer sentir o vibrar da emoção,
e ser eterno o fugidio lampejo,
perenizar o bater do coração,
iluminar a luz de um triste beijo,


Enevoar o mundo na boa bruma
que se assemelha ao soprar do vento;
diferenciar cada um dos mil arquejos,
fantasmas com a corrente do tormento.


Nas palavras, pouco a pouco, construir
etéreo e diáfano refúgio,
de onde se veja o mundo com clareza
e onde se possa abrigar contra o Dilúvio.

 
Aprisionar emoções, momentos, não é esse o meu intento,
a intenção do poeta é a expansão;
Permitir, humilde, as sensações ocultas em suas palavras,
como uma música, viver em eterno movimento,
graça estrelar e, principalmente, transmutação. 

  

segunda-feira, 24 de janeiro de 2011

A maldição de Cassandra

  Cassandra é a minha personagem favorita da queda de Tróia. Há muitas versões sobre o mito dessa princesa troiana, mas todas concordam que ela era uma grande e desacreditada profetisa. Segundo a vertente predominante, Apolo, o Deus da Verdade, amou Cassandra e deu a ela o dom da profecia. Entretanto, a moça não o aceitou, e o Imortal lançou-lhe a maldição de que ninguém jamais acreditaria nas previsões dela, embora todas se cumprissem.
  Assim, Cassandra passa toda a guerra de Tróia alertando as pessoas sobre a queda da cidade e ninguém crê nisso, ignorando solenemente o fato de que as outras predições da princesa eram reais. Se tivesse sido escutada, muitos troianos poderiam evitar a morte saindo de lá... 
  Várias pessoas carregam um pouco dessa profetisa dentro de si. Muitos passam boa parte da vida falando sobre o que acontecerá se nada for feito, e poucos escutam de verdade.
  Mas por que estou eu falando desse mito? Por causa das chuvas na região serrana. Choveu bastante, mas não sejamos tolos a ponto de culpar a natureza pela catástrofe que aconteceu. A ocupação das encostas dos morros foi o principal motivo. Tanto casas miseráveis como condomínios de luxo foram construídos nas encostas, tirando de lá a vegetação original que manteria o solo no lugar em caso de temporais violentos. Assim, a força da água tornou-se absurda quando as tempestades caíram, e os deslizamentos aconteceram, desabrigando, ferindo e matando muitas das pessoas que viviam próximas a esses lugares.
  Muitos já alertaram sobre o perigo da ocupação de encostas; eu mesma já o fiz, aqui mesmo nesse blog, por ocasião das chuvas de abril no Rio de Janeiro em 2010. Mas o poder público ignora. É mais cômodo deixar as favelas onde estão do que realizar políticas de reassentamento daquelas pessoas, o que, além de custar dinheiro, geraria perda de eleitorado para vários políticos, porque muitas vezes essa população prefere ficar onde está por ser mais perto de seus locais de trabalho e de lugares com melhor infra-estrutura. E quanto aos ricos, no país de Collor, Sarney e Calheiros, não é difícil saber que artíficio a classe alta usa para poder construir suas mansões em áreas que deveriam ser de proteção ambiental...
   São em momentos como esse que vários estudiosos, intelectuais, ou simplesmente pessoas de bom senso se sentem como Cassandra. Eu partilho desse sentimento, mesmo sendo desconhecida do grande público, porque dei meu aviso da forma como podia e ele foi, como todos os outros, muitos de pessoas famosas, ignorado. 
   Como na ocasião das chuvas de abril de 2010, deixo aqui o link que informa onde fazer doações para as vítimas do desastre deste ano. Além disso, uma outra forma de exercer a solidariedade é fazer trabalho voluntário, tanto nas cidades atingidas pela catástrofe, como em outras que estão arrecadando alimentos e diversos itens, e precisam de pessoas para empacatá-los e organizá-los para o envio. Uma boa opção é procurar a Cruz Vermelha, cuja filial no Rio fica na Praça Cruz Vermelha 10, no Centro. A instituição abriu uma conta para receber doações em dinheiro: Banco Real Ag. 0201 c/c 1793928-5. É necessário lembrar que há filiais dessa organização em várias cidades brasileiras.
   Deixo aqui a minha revolta, que todo bom intelectual, artista ou não, deve ter experimentado. Afinal, desde a Antiguidade, há aqueles que preferem, como disse Veríssimo, quebrar o espelho quando esse reflete o que não querem ver. A maldição de Cassandra continua; e como ela, mergulhamos nessa angústia de ver Tróia cair.

segunda-feira, 3 de janeiro de 2011

Receita de ano novo

 Olá, meus leitores! Sim, eu sei que esse post deveria ter saído no dia primeiro, mas como todos já sabem, um novo ano só começa mesmo em um dia de semana, logo aqui estou eu hoje.
  Para 2011, faço promessas literárias. Dentro de algum tempo, terei registrado mais poemas meus na Biblioteca Nacional (o que faço com toda a minha obra). Assim, meus versos mais recentes serão mostrados aqui!
  Há outras promessas literárias também, mas essas prefiro não contar, e surpreender a vocês. Por hora, deixo aqui esse texto de Drummond para que todos construamos 2011 muito bem:


Receita de ano novo  

Para você ganhar belíssimo Ano Novo
cor do arco-íris, ou da cor da sua paz,
Ano Novo sem comparação com todo o tempo já vivido
(mal vivido talvez ou sem sentido)
para você ganhar um ano
não apenas pintado de novo, remendado às carreiras,
mas novo nas sementinhas do vir-a-ser;
novo
até no coração das coisas menos percebidas
(a começar pelo seu interior)
novo, espontâneo, que de tão perfeito nem se nota,
mas com ele se come, se passeia,
se ama, se compreende, se trabalha,
você não precisa beber champanha ou qualquer outra birita,
não precisa expedir nem receber mensagens
(planta recebe mensagens?
passa telegramas?)

Não precisa
fazer lista de boas intenções
para arquivá-las na gaveta.
Não precisa chorar arrependido
pelas besteiras consumidas
nem parvamente acreditar
que por decreto de esperança
a partir de janeiro as coisas mudem
e seja tudo claridade, recompensa,
justiça entre os homens e as nações,
liberdade com cheiro e gosto de pão matinal,
direitos respeitados, começando
pelo direito augusto de viver.


Para ganhar um Ano Novo
que mereça este nome,
você, meu caro, tem de merecê-lo,
tem de fazê-lo novo, eu sei que não é fácil,
mas tente, experimente, consciente.
É dentro de você que o Ano Novo
cochila e espera desde sempre.